quinta-feira, 18 de janeiro de 2007


Adiamento


Depois de amanhã, sim, só depois de amanhã…

Levarei amanhã a pensar em depois de amanhã,

E assim será possível; mas hoje não…

Não, hoje nada; hoje não posso.

A persistência confusa da minha subjetividade objetiva,

O sono da minha vida real, intercalado,

O cansaço antecipado e infinito,

Um cansaço de mundos para apanhar um elétrico…

Esta espécie de alma…

Só depois de amanhã…

Hoje quero preparar-me,

Quero preparar-me para pensar amanhã no dia seguinte…

Ele é que é decisivo.

Tenho já o plano traçado; mas não, hoje não traço planos…

Amanhã é o dia dos planos.

Amanhã sentar-me-ei à secretária para conquistar o mundo;

Mas só conquistarei o mundo depois de amanhã…

Tenho vontade de chorar,

Tenho vontade de chorar muito de repente, de dentro…
Não, não queiram saber mais nada, é segredo, não digo.

Só depois de amanhã…

Quando era criança o circo de domingo divertia-me toda a semana.

Hoje só me diverte o circo de domingo de toda a semana da minha infância…

Depois de amanhã serei outro,

A minha vida triunfar-se-á,

Todas as minhas qualidades reais de inteligente, lido e prático

Serão convocadas por um edital…

Mas por um edital de amanhã…

Hoje quero dormir, redigirei amanhã…

Por hoje, qual é o espetáculo que me repetiria a infância?

Mesmo para eu comprar os bilhetes amanhã,

Que depois de amanhã é que está bem o espetáculo…

Antes, não…Depois de amanhã terei a pose pública que amanhã estudarei.

Depois de amanhã serei finalmente o que hoje não posso nunca ser.

Só depois de amanhã…

Tenho sono como o frio de um cão vadio.

Tenho muito sono.

Amanhã te direi as palavras, ou depois de amanhã…

Sim, talvez só depois de amanhã…
O porvir…

Sim, o porvir…


Álvaro de Campos

2 comentários:

deep disse...

Ena, como sabia bem, neste momento, uma esplanada à beira-mar, em amena cavaqueira... a adiar o amanhã!

Beijocas e bom fim de semana.

david santos disse...

Olá!
Parabéns!
Esse trabalho é fantástico. Tal como Álvaro Campos.
Parabéns e bom fim-de-semana.