quinta-feira, 3 de novembro de 2005

O Reino Maravilhoso

"onde estiver um transmontano está qualquer coisa de específico, de irredutível. E porquê? porque, mesmo transplantado, ele ressuma a seiva de onde brotou. Corre‑lhe nas veias a força que recebeu dos penhascos, hemoglobina que nunca se descora."
Miguel Torga
Não porque me pertença um pouco. Não porque lhe pertença inteiramente.
Não porque me faz falta o cheiro de outono, os tons, as castanhas assadas...
não que as saudades tenham, enfim chegado, da terra que habita o coração, um espaço que se quer apenas vazio a ser reocupado, não pertencemos a outro que não para lá do Marão.
Este é o reino a pertenço, este é o reino maravilhoso de Torga, da literatura
São curtas as palavras mas extenso o sentimento...

(Texto para Manuel Hermínio Monteiro)
"E há quem pense que quem vê o mundo já viu, portanto, Trás-os-Montes. Engano puro. Durante muito tempo, a nossa terra era "o reino maravilhoso" - entendia-se: aquela vasta mancha de neblinas de Inverno, de ervas no meio do rio e de açudes entre os choupos deu de si a imagem de um paraíso à espera que o fôssemos revisitar. Tínhamos saído de lá por vários motivos e nem sempre se tratou de expulsão, como aconteceu no Pentateuco. A falar verdade, e a esta distância, o paraíso era um lugar estranho, com montanhas que limitavam em muito os caminhos onde sempre julgámos que poderíamos ser livres e felizes e ter cumprido um destino. Grande artimanha, esta, de nos desculparmos com as montanhas, e com os granitos frios, e com os bosques, os mesmos que se vêem quando se dobra do Alto do Pópulo para Parada do Pinhão, mesmo lá do alto.
Havia um homem, na tua terra, que vinha para o meio da rua mal os relâmpagos iluminavam o céu e os trovões anunciavam a ira dos elementos: "Ó divinas potestades, mostrai a vossa face!" Era tremenda a frase, dita assim por um paisano, mas era verdadeira. Não sei onde aprendeu a frase, mas deve ter sido do resto de um sermão na velha capela mesmo ao alto da aldeia - e serve para nos lembrarmos desse rosto do céu da nossa terra, plúmbeo (como aprendemos pela literatura), negro e austero, cobrindo todos os caminhos, todos os muros de vinha, todos os castanheiros e carvalhos que resistiram, todos os negrilhos erguidos como uma sombra à espera da ameaça do Verão, que vinha secar os lameiros e as fontes da serra. Sobrava, desse Verão que queimaria a terra - se esta não albergasse a humidade eterna da província -, o rio que descia para o Douro e crescia por onde seguiste depois.



De modo que quem viu o mundo não pode dizer que já viu Trás-os-Montes. A literatura chama-lhe "reino maravilhoso", sim, porque é essa mesma sensação que se tem desde o alto dos picos, quando os socalcos ou as clareiras começam a ganhar forma. Da Galafura, de um lado, de São Salvador do Mundo, do outro, Trás-os-Montes e Alto Douro (como é o seu nome completo) parece-se bastante com um reino maravilhoso, sim, mas os segredos que se guardam desse mapa, dessa corografia, dessa gigantesca orografia, não cabem na literatura, como não cabem na palma da mão, mesmo se a memória não perde os dias de neve, as geadas que cobrem as urzes, os cheiros das ervas e das comidas, os dias de romaria e de foguetes nas ermidas, os festins do Entrudo, a mansidão do gado a descer as encostas, o ruído das cancelas que se abrem para as hortas, ou a simples azáfama da terra a procurar pousio.
Há aqui outro reino que, para lá do animal, do vegetal e do maravilhoso, sagrada fórmula que desenha esse triângulo dos mundos conhecidos, fala da nossa terra de outra maneira: é o reino da ausência. Não o da ausência que atravessa o Grande Rio de onde se não regressa jamais, ou o da ausência que cabe entre os riscos da chuva, quando não sabemos dar-lhe um nome, atribuir-lhe uma voz, enumerar os seus afluentes. Porque, assim como não sabemos o caminho do vento, também não saberemos a natureza exacta e a vastidão das obras desta terra (para citar o profeta), das suas minas de ouro, dos seus planaltos de pedra. Sabe-se, apenas, suspeita-se. Esse mundo de adros à beira do crepúsculo, de ciclos naturais e de eiras de xisto, de lobos vagueando nos cruzeiros à entrada das aldeias, de cigarras à beira do delírio - só podia ser o teu mundo. Também é o mundo do melro junqueiriano, troçando do velho cura; e o do comboio que ainda agora desfez a curva antes de deparar com a pequena baía do Pinhão e com o largo onde foram crescendo os lugares de partida. Mas nenhum nome é demasiado justo para o descrever ou suficientemente pacífico para lhe devolver a paz." FRANCISCO JOSÉ VIEGAS
Para lá do Marão, Mandam os que lá estão!
"Este Trás‑os‑Montes da minha alma! Atravessa‑se o Marão, e entra‑se logo no paraíso!"Miguel Torga

4 comentários:

deep disse...

E... pra cá do Marão, mandam os que cá estão... cada vez menos!...

deep disse...

Resolvi vir de novo a tua "casa". Gosto mesmo muito das tuas fotos! Penso que podias fazer alguma coisa "por elas"!...
Fui aos teus arquivos e roubei um poema do Devendra Banhart para postar no meu "cantinho" - algum dia tinha que ser a minha vez de roubar!...
Bjoca

Ana disse...

obrigada, muita gente me diz, me anima para fazer algo comos meus trabalhos. sei k não tenho força...
obrigadão :*

deep disse...

Ainda hj falámos nisso e em como é uma pena que não aproveites os teus talentos, incluindo a ilustração.
Anima-te, acredita!